Armas de Aluguel

14 de setembro de 2017

Sempre gostei de histórias de policiais e gangsteres 



Muitos dos meus heróis de infância eram policiais barra-pesada que metiam o medo na bandidagem, Stallone Cobra, Dirty Harry, todos os policiais interpretados por Charles Bronson... a lista continua e transborda maravilhas da década 80 (tá, nem tudo era maravilha). Ao mesmo tempo que os gangsteres se mostraram personagens tão carismáticos quanto os policiais, sendo que às vezes a gente até torce pra eles. Foi pensando nisso que "Armas de Aluguel" nasceu, estava em um exercício criativo com outro amigo escritor e o tema daquela vez era "história policial". Espero que gostem.


Armas de Aluguel



          O rádio do carro tocava um sucesso dos anos 80 quando o jovem no banco de trás se mostrou impaciente com a situação. 
"Caralho, que coisa mais chata." Marcelo disse, entre dois bocejos longos. 
"Você claramente ainda não captou o significado da palavra “tocaia”, guri." disse Olavo, enquanto escrevia alguma coisa em um velho caderno com capa de couro e páginas manchadas, iluminado apenas pela luz interna do carro.
"Não é isso", disse Marcelo "é que nós já estamos aqui há mais de..." esfregou seus olhos e os arregalou, tentando olhar o relógio em seu pulso "cinco horas e até agora o máximo de ação que tivemos foi quando você derramou café no seu colo."
"Como eu disse antes," Olavo passou a mão no rosto, coçando seu farto bigode grisalho. "você parece não ter entendido o conceito do que estamos fazendo."
Marcelo passou para o banco do carona, abriu a térmica e encheu um copão de café quente. O locutor da rádio anunciou os comerciais e disse que a próxima hora abrangeria grandes sucessos da década de 90. Olavo soltou uma bufada e apertou com força o botão para desligar o rádio.
"Passo." ele disse. "Ei, qual o problema com a década de 90?" Marcelo fez uma careta nos primeiros goles que dera no café. 
"Nada, se você gosta de lixo."
"Cacete..."
"O que foi?"
"Você chegou naquela idade, Olavo..."
"Que idade?"
"Em que tudo era melhor na 'sua época.' Marcelo soltou uma risada. Já não fazia mais caretas com os goles no café. 
"Pode chamar de saudosismo, mas as coisas eram sim melhores na minha época."
"Pera aí, por acaso você tá morto?"
 "Não." Olavo parou de escrever e virou-se para Marcelo. 
"Então a sua época é agora, não?"
Olavo ficou sem resposta. Dignou-se apenas a encarar Marcelo por alguns instantes e logo voltou para o seu caderno de anotações. O rapaz soltou uma pequena risada e terminou seu café, enchendo outro copo logo em seguida.
"To cagado de fome." disse Marcelo. 
"Tem certeza que não quer os sanduíches que Marta me fez hoje cedo?" O jovem pegou o sanduíche em suas mãos e ficou observando-o através da embalagem transparente colocada pela esposa de Olavo. Nem precisava tirar do plástico para sentir o cheiro forte de bolonhesa e queijo. Marcelo aproximou o lanche do seu nariz, lentamente, procurando se acostumar com o odor.
"Se vai ficar de frescura, passa ele pra cá!" Olavo tomou o sanduíche das mãos do rapaz, abriu o pacote e mandou para dentro tão rápido que o cheiro até sumiu do carro.
"Isso ainda vai acabar te matando." Marcelo terminava agora o seu segundo copo de café. 
"Sei, sei. A gente tem que morrer de alguma coisa, guri. Que seja com frios de qualidade." Olavo passou seu lenço de pano no bigode engraxado. Marcelo revirou na bagunça que estava no banco de trás e puxou um binóculo.
"Então..." ele disse, olhando para a casa no final da rua. "Exatamente até quando a gente vai ficar aqui?"
"Jesus, quanta impaciência!" disse o homem mais velho, balançando a cabeça em negativa. "Até a gente terminar a porra do trabalho." Marcelo tirou a atenção do binóculo por um instante, olhando para o homem ao lado apenas com o canto dos olhos. Olavo retornou ao seu caderno de anotações, após servir e tomar o último copo de café que restava dentro da térmica.
"Espero que o seu informante esteja certo, porque vou te contar... "ele disse." ter que aguentar uma tocaia com você por uma dica fria vai ser extremamente desagradável. 
"Meu cara é quente." disse Marcelo. "A gente é camarada desde antes de ele entrar pra essa vidinha mais ou menos..."
"Assim espero. Nada mudou muito durante os minutos seguintes. Olavo continuou escrevendo enquanto Marcelo revezava entre olhar seu celular e o binóculo, tentando manter-se desperto.
"Então," disse Marcelo. "conseguiu resolver aquele problema com o seu bloqueio criativo?"
Olavo continuou a escrever em seu caderno com capa de couro e folhas manchadas, sem dar atenção para Marcelo. Após alguns segundos, o homem respondeu:
"Felizmente." ele disse. "Finalmente acho que encontrei um norte para a história. Ela ganhou mais emoção agora."
"Me fala mais sobre ela."
"Lembra do vilão da história? O 'Rei do Crime' de Canoas?"
"Lembro."
"Então... Lembra que os mocinhos da história estavam com dificuldades em encontrar provas pra pegar ele, né?"
"Sim, os detetives. Eu lembro."
Marcelo voltou a olhar no binóculo.
"Acontece que o mais novo da dupla conseguiu uma dica com um informante. Essa dica afirmava que o 'rei' estava passando a perna em seus parceiros e intermediários, lucrando o dobro em cima de todas as transações que aconteciam não só em Canoas, mas também em algumas cidades próximas.
"Mas em quê isso iria ajudar eles? Quer dizer, isso seria o suficiente apenas para criar uma racha interna na organização, nada concreto para que colocasse o 'rei' atrás das grades.
"Marcelo continuava observando a casa."
"É aqui que a história fica interessante. Eles descobrem também que boa parte de seus colegas foram comprados e os que não foram comprados, foram extorquidos. Ambos são os últimos homens íntegros na força. Descobriram a podridão no sistema. Um sistema onde até mesmo seus superiores, homens das mais altas patentes estavam de quatro para este rei do crime organizado.
"Ainda assim, isso só piora a situação deles, não?"
"Um dos policiais comprados deu com a língua nos dentes e comprometeu toda a organização, de uma ponta a outra da pirâmide." Se fosse possível ver algo por debaixo de seu bigode, Marcelo diria que Olavo estava sorrindo. 
"Interessante..." disse Marcelo, movendo sua cabeça para frente.
"Obrigado. Tem sido uma história muito bacana de escrever." 
"O que?" Marcelo tirou os olhos do binóculo e virou-se para Olavo. "Não. Eu tava falando daquilo!"
O jovem apagou rapidamente a luz interna do carro e apontou na direção da casa que estavam observando aquele tempo todo. Um carro havia estacionado na garagem exatamente às cinco da manhã. Olavo fechou seu caderno e tirou o binóculo das mãos de Marcelo. 
"É o nosso cara?" perguntou o jovem.
"O próprio."
"O que a gente faz agora?"
"Agora a gente espera." disse o homem do bigode grisalho.
"Espera? Como assim? A única coisa que a gente fez até agora foi esperar!"
Olavo franziu as sobrancelhas e ligou o rádio novamente. A música “É Proibido Fumar” começou a tocar, lembrando o homem mais velho de que já fazia algum tempo desde a sua última tragada. Retirou uma carteira de Marlboro vermelho do bolso de seu casaco, pegou um cigarro e o acendeu. A cada vez que a ponta alaranjada se acendia, Olavo enchia seus pulmões com calmaria instantânea.
"Me pergunto como este tipo de lixo fazia sucesso." entre uma baforada e outra, ele perguntou: "Quer um?" 
Marcelo apenas arremangou o braço de sua camisa, revelando um adesivo acinzentado.

 "Não vai dizer que isso vai me matar também?"

"Nem. Quando o assunto é cigarro, eu já desisti"

"Muito obrigado." ele disse. "E sobre a sua pergunta, o negócio é o seguinte: a gente precisa esperar o cara chegar em casa e se preparar pra dormir. É quando ele vai estar mais vulnerável. Por isso a gente precisa esperar mais um pouco, capicce?

"Acho que sim." disse Marcelo, pegando seu revolver e checando a munição. "Mas então... sobre a sua história. Já tem um final pra ela?"

Olavo também pegou sua arma, fazendo os preparativos de rotina. "Tudo depende do que acontecer hoje aqui."

"Como assim?"

"Na parte que estou escrevendo, os dois detetives da história estão em uma tocaia esperando o policial corrupto que deu com a língua nos dentes chegar em casa para surpreender o cara. Como a grande maioria de seus colegas estão comprados pelo crime organizado, apenas os dois podem resolver a situação."

"Caramba, cara. Você é bom hein?" Marcelo soltou uma risada. "É o que dizem mesmo: A vida imita a arte e vice-versa."

 "Acho que é por aí." Olavo sorriu. 

"Então, o plano continua o mesmo?" perguntou Marcelo.

"Sim. Você vai pela parte de trás enquanto eu vou pela porta da frente. Não queremos surpresas."

 Ambos engatilharam suas armas e seus olhares se encontraram. "Não esquece que não é pra matar esse cara", disse Olavo. "o chefe quer o porco vivo. E pega o distintivo dele também. O patrão pediu um souvenir. "Beleza. Mas isso não impede a gente de dar um tirinho na perna dele caso ele queira fugir, né?" 

"Acho que até se ele não tentar..." Olavo deu uma gargalhada.

 "Caralho", disse o rapaz. "que bom que a gente não é esse policial." 


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