Boas Memórias

10 de agosto de 2017

Todos possuímos aquelas memórias que guardamos com carinho
Me considero uma pessoa nostálgica. Às vezes, não muito raramente, me pego parado pensando na vida e em tudo que já me aconteceu. Coisas que aconteceram há um ano, coisas que aconteceram há quinze. É engraçado como a cabeça da gente funciona com lembranças. Por exemplo, não tenho a menor ideia do que eu almocei semana passada, mas me lembro como se fosse ontem de uma tarde quente de sábado que estava na casa da minha avó, um carro de picolé passou e minha mãe me comprou um picolé de creme de ovos. É uma memória viva na minha mente. Ela foi forjada com fogo. Lembrando dessas forjas de memórias que acontecem em nossas vidas, "Boas Memórias" acabou nascendo e tomando forma. 
Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
Um feliz dia dos pais para todos. Pai é quem cria. 
Boas Memórias

Era 1998, ele estacionou na frente da casa da vovó e nós saímos de nossa antiga Caravan azul perolada. Eu ainda estava com o meu uniforme da escola, ele com o da oficina. Minha mãozinha sumiu dentro da sua, que me segurava com um misto de firmeza e carinho que nunca consegui copiar. Ele segurava uma sacola grande na outra mão, mas, contrariando a curiosidade inerente à minha pessoa, dessa vez eu não perguntei o que tinha lá dentro. Não precisava saber, só queria saborear aquilo. Desde muito cedo aprendi a aproveitar as pequenas coisas. No fim das contas, são elas que fazem a diferença. 
A gente andou pelo caminho das pedras que cortava o antigo jardim da vovó, formado por margaridas e copos de leite. Passamos pelo pneu que ele colocou na árvore para que eu me balançasse; ensaiei um pequeno sorriso ao lembrar da vez em que um primo caiu de bunda no chão, tentando se balançar nele pela primeira vez. Olhei pra cima e vi o sol de fim de tarde batendo em seu rosto e refletindo nas lentes de seus óculos. Olhando pra ele, quase pisei em Jasmim, o gato da vovó. Gato preguiçoso, sempre deitado nos lugares mais inoportunos. 
A gente entrou na área e vovó estava dormindo na sua cadeira de balanço, a térmica e o chimarrão aos seus pés. Ele largou a sacola grande em cima da mesa que ficava na rua e entrou em casa. 
Sua antiga casa. 
Eu fiquei esperando na rua, olhando vovó dormir. Ela dormia de boca aberta e dava pra ver seu dente de ouro reluzindo contra a luz. Sempre imaginei que ela fosse uma pirata, por conta daquele dente. Imagina só, uma vó pirata. Sempre tive uma imaginação fértil. 
Ele voltou lá de dentro com o um copo de refrigerante e me entregou, afagando minha cabeça. Ele colocou água quente na cuia, sentou-se no velho banquinho de jacarandá e começou a tomar o chimarrão. Por volta do segundo ou terceiro, vovó se acordou e soltou um palavrão. Aquela cara de quem recém acordou.
"Há quanto tempo vocês tão aqui?" ela disse. 
"Chegamos agora" ele disse, piscando para mim.
Vovó se levantou e o abraçou, depois foi a minha vez. 
"Meu piolho." ela sussurrou em meu ouvido, me enchendo de beijos logo em seguida. 
Depois disso, eles conversaram sobre algo que eu não lembro e ambos entraram em casa. Me sentei na cadeira de balanço da vovó e fiquei olhando para a grande sacola que estava em cima da mesa. Pela primeira vez, me perguntei o que será que tinha lá dentro. A curiosidade era grande, mas não mexi nela. Sempre fui um garoto comportado. Terminei meu refrigerante e, ao mesmo tempo, ele saiu lá de dentro, despedindo-se de minha avó. Era uma visita rápida.
Ele se colocou na minha frente, afagou a minha cabeça e retirou o copo de minha mão. De joelhos, ele colocou seus olhos na altura dos meus, tirando aquele ar de superioridade que a maioria dos adultos ostenta. 
Mas ele não era a maioria dos adultos. 
"Conversei com a tua mãe e a gente chegou na conclusão de que era hora." ele disse, seu rosto estava sério. Mais sério do que o normal. "Isto é um voto de confiança. Tu mereceu isto. No momento que eu ou tua mãe acharmos que essa confiança foi quebrada, a gente tira ele de ti.  E não é por conta disto, que vai ser só festa e tu vai deixar de estudar. Vai ter horário estipulado."
Continuei compenetrado, fingindo que entendia o que havia saído de sua boca. Ele colocou a mão em meu ombro e sorriu. 
"Entendeu?" ele me perguntou e eu disse que sim com a cabeça, mesmo não entendendo patavinas. 
"Ótimo." ele disse e se levantou, pegando a sacola grande. A vovó estava na porta da casa com a cuia em sua mão. Ela soltou um sorriso, o tipo de sorriso que a gente solta quando sabe de alguma coisa.

"Toma." ele disse.
Eu abri a sacola grande e lá dentro eu vi uma caixa preta com letras vermelhas, figuras coloridas na parte de trás. Meus olhos se encheram de água e, por um segundo, deixei a caixa de lado e o abracei com muita força. Na hora eu já sabia que aquele momento ficaria marcado na minha mente até os meus últimos dias nesta Terra. Aquele abraço não era uma resposta imediata ao fato de eu ter ganhado um videogame. Na época eu não sabia disso, é claro. 
Hoje eu sei. 
Aquele abraço era algo muito maior. Era a gente forjando uma memória. Era eu dizendo eu te amo, mesmo que sem precisar dizer essas três palavras. 
Era um filho apaixonado por seu pai. 
Olhando para trás, percebo o quanto aquele dia ficou marcado na minha cabeça.

Tenho boas memórias da década de 90.

7 comentários

  1. Maldade mandar ninjas com shurikens de cebola atacarem meus olhos enquanto estou num ônibus lotado. Quando eu crescer (e deixar de ser preguiçoso pra escrever) quero ser igual a você. :D

    Mais uma coisa. Vc chegou escrever mais alguma coisa com o Pesadelo. Curti o conto dele. Hehehe!

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    1. shurikens ninja com cebola é esse teu comentário aí... Valeu, Diogo "Churrumino" Silva. <3
      Sobre o Pesadelo... Tem mais coisas dele sim. Em breve ele faz outra aparição :3

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  2. Boas e belas memórias, menino Moe. Meus parabéns pelo belo conto e pelo blog!!!

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    1. Valeu, Dedê! Aquela conversa que tivemos uns meses atrás me ajudou bastante. Que bom que tu gostou, cara. Obrigado pelo apoio.

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  3. Muito bom cara, cultivo ótimas lembranças com meus pais, sempre bom relembrar estes momentos! :)

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    1. É como falei... Essas coisas são engraçadas. A gente guarda coisas de muito tempo às vezes, mas não lembra o que fez ontem. Que bom que gostou, Evandro. Valeu pela leitura, cara.

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